terça-feira, dezembro 12

A longa epopeia dos direitos humanos

Por decisão soberana das nossas autoridades iremos nos próximos meses acumular às nossas muitas preocupações a discussão da questão do aborto. Trata-se de um tema polémico em que a sociedade está dolorosamente dividida, com razões fortes dos dois lados. Mas, ao mesmo tempo, devemos lembrar que esta discussão de valores básicos e vitais constitui uma longa tradição na civilização moderna. Embora neste caso com duas diferenças importantes.Os últimos séculos do mundo ocidental incluem uma sequência de debates deste tipo. Há 200 anos discutiam-se os privilégios da nobreza e a igualdade perante a lei; há 150 lutava-se contra a escravatura e a pena de morte; há 100 anos debatiam-se os direitos das mulheres e a democracia; há 50 a igualdade das minorias étnicas, dos judeus aos negros. Muitas vezes estes assuntos arrastaram-se, pelo que todas as gerações recentes se encontraram divididas por temas fundamentais. A discussão do aborto e outras conexas - eutanásia, droga, casamento, família - toma hoje o lugar de velhas lutas.Não faltam os que, precisamente por isso, consideram o combate pela liberalização do aborto como o próximo passo na longa e majestosa epopeia de afirmação dos direitos individuais. Esses consideram os que se lhe opõem como relíquias obscurantistas e retrógradas que serão pulverizadas pela simples passagem do tempo. Mas a realidade é precisamente a inversa.Os termos da discussão são claros. De um lado temos os que defendem um princípio fundamental. Antes era a igualdade de todos os cidadãos, o direito à vida dos condenados ou à liberdade dos escravos. Hoje é o direito à vida do embrião. Confrontando esta posição simples e fundamental, o outro lado apresenta uma enorme quantidade de interesses particulares. Os antigos absolutistas, esclavagistas, racistas e totalitários diziam proteger velhas tradições e privilégios, benefícios económicos concretos, vantagens comunitárias específicas. Contra esses, a luta pelos direitos fundamentais sempre se baseou na tese de que a conveniência sócio-económica de alguns não podia justificar a angústia, escravização ou morte de outras pessoas. Foi sempre assim que se combateu a opressão e discriminação.Hoje, do mesmo modo, alguns invocam a conveniência sócio-económica para liberalizar o aborto. Esses falam de múltiplos temas e aspectos, dos julgamentos de mulheres às práticas clandestinas, passando pela desigualdade social. Têm razão em muito do que dizem. Mas contra eles está apenas a superioridade do direito fundamental à vida. Os abortistas, ao negarem o igual estatuto humano ao embrião, fazem precisamente o mesmo que os antigos racistas e esclavagistas faziam às suas vítimas. Pelo contrário quem defende a vida dos mais fracos, daqueles que não se podem defender nem têm voz na sociedade, são os que querem manter a proibição do aborto.Existem, porém, duas enormes diferenças neste debate que merecem destaque. A primeira é que desta vez a discussão pretende ser feita por vias legais. Antigamente o combate pela liberdade e igualdade desenrolava-se na sociedade, mas a luta pelo aborto parece fazer-se pela convocação de um referendo. Todos fingem que uma votação vai decidir a questão. Depois, como se viu há oito anos, nada fica resolvido, porque o problema não é regulamentar, é humano. Mas as autoridades insistem na mesma via, convencidas ingenuamente de que assim se arruma o caso.A segunda diferença é que antigamente quem lutava pelos direitos básicos desafiava a lei estabelecida. Eram os códigos milenares que estabeleciam os interesses da aristocracia, a abjecção dos escravos, a humilhação da mulher e das minorias étnicas. E foi a luta social que mudou esses pergaminhos. Mas, desta vez, a lei nacional prescreve há muito tempo o direito à vida de cada ser humano desde a sua concepção. Assim, a defesa do direito fundamental faz-se dentro do quadro legal, e são os que o querem atacar, por razões de conveniência sócio-económica, que desejam alterar a lei. Este último ponto é muito significativo. Ele mostra como, ao contrário do que se afirma, este confronto não representa um passo na majestosa luta pela afirmação dos direitos individuais. O que está em causa não é alargar os direitos, mas reduzi-los. Liberalizar o aborto, mesmo por razões compreensíveis, destrói sempre um valor muito superior. A luta é pois para evitar um primeiro recuo na trajectória civilizacional dos direitos humanos.

(João César das Neves Professor universitário)

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