domingo, dezembro 3

O "Sim" à Renascença


Não há órgão de comunicação social no interior da esfera a que se costuma designar de "referência" que não exalte a sua isenção e independência. Mas entre os estatutos editoriais bem intencionados, mas que a maior parte dos jornalistas que trabalham nas redacções provavelmente nem conhecem, e a prática quotidiana, há problemas. O contrato tácito celebrado entre os jornalistas e os leitores, exigindo distanciamento e serenidade por parte dos jornalistas, é torpedeado com mais frequência do que aquela que seria aceitável. Numas ocasiões por omissão, noutras por acção. Em certos casos de forma involuntária, noutros intencionalmente.É nas situações em que, na opinião pública, as águas se separam com mais nitidez que se podem detectar mais facilmente as violações àquele acordo. Pela abordagem dos assuntos, pelos pontos de vista escolhidos, pela concentração do foco neste ou naquele detalhe, pela secundarização de alguns aspectos em relação a outros, um leitor atento pode perceber se as convicções pessoais do jornalista ou de quem edita a informação perturbaram o equilíbrio da informação a que lhe é dado acesso. Estes são os riscos do chamado "jornalismo de causas", em que uma qualquer militância pode chocar de frente com a perseguição da objectividade que, mesmo em circunstâncias complexas, não deve ser perdida de vista quando se trata de preencher espaços informativos. A discussão sobre a interrupção voluntária da gravidez, que vai estar em crescendo nas próximas semanas à medida que se for aproximando a data de realização do novo referendo, é um dos terrenos escorregadios em que será provavelmente simples detectar falhas. Há argumentos fortes e de ambos os lados e, como se viu em situações anteriores, a incapacidade de qualquer um dos lados em convencer plenamente os partidários do sector contrário faz com que, a partir do impasse, a emotividade se sobreponha ao raciocínio ponderado. Os jornalistas não são indiferentes a estas e outras questões, mas reivindica-se que sejam diferentes dos restantes cidadãos no que toca a travar a força das emoções em favor da produção de informação que ajude, de facto, a explicar o que está verdadeiramente em causa, para lá da propaganda e dos sound bytes.Em casos como este, o pior serviço que se pode prestar à credibilidade é o de fingir que se é isento, ao mesmo tempo que se edita a informação de acordo com as próprias convicções. A hipocrisia paga-se caro, enquanto a clarificação, necessitando de coragem e capacidade para correr riscos, pode ser um trunfo. Não se percebe, por isto, por que motivo o Sindicato dos Jornalistas decidiu causticar a Rádio Renascença pelo facto de a estação de rádio ter anunciado ser favorável ao "não" em matéria de referendo sobre o aborto. Principalmente quando o silêncio desta estrutura em relação a muitos outros aspectos do exercício do jornalismo e da confusão entre estas funções e tarefas de natureza partidária é ensurdecedor. Ao contrário do que pensa o Sindicato dos Jornalistas, a iniciativa da Rádio Renascença merece ser elogiada. Revela que os seus responsáveis não dissimulam aquilo em que acreditam e, também, que não têm medo de passar pelo exigente teste da credibilidade que consiste em abrirem o jogo quando têm pela frente uma campanha para o referendo que exige jornalismo feito com critério. O cinismo reinante colocará a Renascença sob um rigoroso escrutínio durante o período de debate e campanha para o referendo, que certamente não será estendido aos restantes órgãos de comunicação social. Se considera que uma atitude destemida como esta é criticável, o Sindicato dos Jornalistas tem de fazer um exame de consciência e corrigir o tiro. Resta apenas uma dúvida: que diria o conselho deontológico se a declaração de apoio fosse dirigida ao "sim"?
J. Candido da Silva
Publico, 061202

Sem comentários: